quinta-feira, 25 de outubro de 2007

Velho Sobrado


Aquela rua era uma das mais antigas da cidade, trazia muitos anos de história marcados em seu calçamento de pedras pretas brilhantes, o velho sobrado que pertenceu a minha família era uma das poucas construções originais que ainda resistiam ao progresso. Ficava no centro de um enorme terreno, rodeado por um extenso jardim de lindos canteiros floridos com uma fonte ao centro encimada por um chafariz em forma de querubim, atrás da casa ainda existiam mangueiras e jabuticabeiras centenárias, o terreno se estendia até a rua de trás unindo-se a outra casa por um pequeno portão. Aquele foi por muito tempo o paraíso para mim, refúgio em minha infância e lugar de repouso em minha juventude.



Com dificuldade, tentando superar a dor, caminhei lentamente pela rua contemplando a beleza da arquitetura daquela casa, me detive por um breve instante diante do portão de ferro, empurrei-o e alguns passos depois estava atravessando a porta entreaberta. Esta porta nunca esteve trancada e a casa nunca foi tão vazia quanto agora.
A ampla sala outrora tão alegre estava silenciosa, nada se ouvia senão o vento emergindo entre as frestas das enormes janelas. Hoje não havia ali crianças brincando ou mesmo adultos conversando. A mesa parecia posta para o jantar doze cadeiras cuidadosamente dispostas a circundavam, os altos encostos de madeira entalhada e acolchoados em veludo davam um toque de refinamento enquanto a poeira que os cobria denotava o abandono.
Subindo a escada acreditava deixar para trás, anos de vão sofrimento. De alguma forma sabia reconhecer que seria esta a última vez. Levaria dali apenas as roupas que me cabiam no corpo e naquele momento atenuavam o desconforto dos dois graus de uma tarde invernal, nada de material era mais relevante.
A porta em frente à escada dava entrada à biblioteca, num último momento parei diante daquela porta e pus o pensamento a viajar pelo tempo, tentando pela última vez encontrar a resposta para a questão que carregava desde a infância: Por que chamam esta sala sombria de biblioteca?
As primeiras lembranças conscientes me levaram aos cinco, seis anos de idade, dia de visitar a vovó era um dia muito esperado. Embora não pensasse nisso durante todo o ano, as vésperas de natal eram tomadas por tamanha ansiedade que atingia a todos naquela casa. Era a única oportunidade que tínhamos para deixar a fazenda, o trabalho duro e passar alguns dias de festas ao lado de parentes queridos.
Aquela viagem começou no dia vinte e dois de dezembro, era domingo e consentiu-se que prolongaríamos o feriado, o início era uma caminhada, cerca de dois quilômetros distava a casa da linha. O ônibus que levava até a primeira cidade passava a qualquer momento depois das sete e meia, fazendo com que todos acordassem enquanto as galinhas ainda dormiam. A chuva da noite anterior fora forte, mas agora o céu aparecia estrelado e ainda levaria mais de uma hora para que as primeiras luzes da aurora surgissem, por isso, uma lanterna fraca era o guia pelo enlameado caminho. Papai ia à frente com as malas mais pesadas e a lanterna, ele parecia ter quatro braços, pois vez ou outra ainda tinha que ajudar as três crianças a superar alguns obstáculos pelo caminho. Mamãe, cuidadosa, seguia atrás com mais algumas sacolas. Tinha o capricho de trazer alguns trapos velhos e pares de sapatos limpos, alguns novos, para que pudessem se limpar do barro da estrada e estarem impecáveis com sapatos brilhantes e roupas limpas quando chegasse o expresso.
Faltavam ainda alguns minutos para as sete e naquele dia, o ônibus ficara encalhado num atoleiro e atrasaria ainda mais de meia hora. Para quem esperava o ano inteiro esta viagem, parecia um século aqueles trinta e poucos minutos. A penitência duraria ainda muitas horas e algumas trocas de ônibus até chegarem ao seu destino, o que só aconteceria no final da tarde. O almoço seria pasteis gordurosos e mornos de uma rodoviária, mas para as crianças isso era ótimo, vinham acompanhados de uma garrafa de jaózinho, coisa que não existia na fazenda.
Tão logo chegamos o cansaço da viagem desaparecera e agora corríamos extasiados pelo jardim, encontrando outras crianças, atravessamos o pomar e cruzando o portão já estávamos na outra casa, encontrando nossos primos e aumentando a algazarra, falávamos sobre a viagem e tentávamos adivinhar quais seriam os presentes que ganharíamos logo mais, fazíamos a lista das pessoas que esperávamos ver e contávamos quantos faltavam para completar nossa festa.
Interrompendo as lembranças, voltei para a porta da proibida biblioteca, antes sempre fechada e agora entreaberta, empurrei-a até o batente, caminhei em direção ao centro da sala quase vazia, o som de meus passos sobre o assoalho de madeira era amplificado pelo pé direito de quase quatro metros, ecoando no forro adornado por belos entalhes em madeira que repetiam grafismos de estrelas, no centro, uma enorme cruz em relevo se destacava, imaginei que seria um elemento próprio para decorar o teto de uma capela. Uma namoradeira finamente trabalhada, acolchoada com veludo vinho e detalhes de flor-de-lis agora coberta de poeira era a única peça restante, três janelas enormes deixavam passar por suas treliças já tomadas por cupins e aranhas uns poucos fachos de luz. Uma grande porta com detalhes em vitral dava acesso à pequena sacada, retalhos de vidro multicor retratavam cenas da paixão de cristo. Não quis abri-la, a luz do dia não mais me interessava, além disso, a paisagem que outrora revelava aquela sacada há muito fora substituída por um enorme prédio de cor cinzenta e vidros escuros, negros que escondiam tudo o que existia lá dentro, símbolo da imponência de uma nova era que sepultou as belezas daquela cidade.
Parei um instante diante daqueles vitrais, olhava ora para os desenhos ora para a cruz no teto, os símbolos e cenas ali representavam dor, sofrimento, morte, separação... Por que valorizamos tanto o sofrimento e esquecemos com tanta facilidade os pequenos momentos quase insignificantes que nos trazem satisfação e não percebemos que neles está o caminho para a felicidade? Há dois mil anos nos ajoelhamos diante da cena de um Homem humilhado em um madeiro, despido de suas vestes, coroado por espinhos, com o corpo lacerado por chibatadas e arranhões de uma humilhante caminhada e ali depositamos nossas súplicas e desejos. São raros, porém os momentos que nos lembramos das belas mensagens e felizes acontecimentos que nos deixou como herança esse mesmo homem.
Num canto da sala estava o enorme baú que fora o alvo da curiosidade das crianças que corriam por esses salões, escadarias e corredores. Caminhei lentamente para ele lembrando se tratar de um local proibido, o que guardaria esta caixa tão guardada todos esses anos e agora abandonada tão vulnerável? A tampa do baú sequer possuía tranca, nunca possuiu. Sua tampa leve logo estava aberta, revelando os segredos que um dia encerrou, poucos objetos restaram ali, mas foram guardados como se fossem tesouros valiosos.
_ Um par de sapatos com marcas de muito uso porém bem cuidados, tirando com a mão um pouco de poeira que o cobria, notava-se que tinha sido cuidadosamente engraxado antes que fosse embalado em uma caixa forrada de papel e depositado ali. Perguntava-me por que aquele sapato esteve ali todos esses anos enquanto milhares caminhavam descalços? Devolve-lo à caixa e esta ao baú era minha única escolha agora.
_ Uma caixa de madeira coberta com papel metalizado era o próximo alvo, era pesada e trancada por uma minúscula chave que estranhamente ficava presa ao fecho por um cordão púrpuro, trazia muitas moedas, de diversos tamanhos e cores, muitas eras podiam ser contadas por aquelas peças de réis, cruzeiros, e cruzados. Uma moeda de quarto de dólar se destacava prateada entre todas, cédulas de valores que iam de um a um milhão cuidadosamente estendidas no fundo da caixa sequer traziam marcas de dobras, pareciam estar tal como saíram das prensas da casa da moeda exceto uma pequena cédula verde de um cruzeiro, suja e rota trazia uma inscrição em caligrafia canhestra: “quem pegar nessa nota vai ter muito ‘dinhero’ e vai ser rico”. Aquela pequena caixa encerrava a fortuna de toda uma vida de alguém que outrora acreditou nessa profecia.
_ Aquilo parecia ser um livro mas revelava o que um dia foi um álbum de fotografias, folheei-o lentamente fitando com atenção cada um daqueles momentos retratados. Que fim tiveram todas aquelas pessoas? De alguns nem se lembrava outras pareciam tão presentes como se nunca tivesse me separado delas. Mais adiante uma fotografia chamou-me atenção, uma mesa posta com comidas variadas, muitos pratos e talheres, porém todas as cadeiras vazias, nenhuma pessoa se via, aquela foto parecia uma tentativa de capturar e guardar aquele momento de fartura. Que outro motivo alguém teria para fotografar macarronada, arroz, leitoa assada, saladas e pães?
Frustrado, devolvi tudo ao baú e o fechei, sepultando a curiosidade que me acompanhou por tantos anos. Não havia ali segredos irreveláveis tampouco tesouros ou qualquer coisa que significasse naquele momento.
Ao lado do baú, uma pequena mesa trazia um castiçal e um livro do qual restou muito pouco, a capa com inscrições em ouro “Bíblia Sagrada”, as folhas foram destruídas pela umidade ou comidas por traças e no que sobrou de uma página ainda podia se ler o cabeçalho: “João 3”. Em meus anos de consciência este foi o único livro que existiu nesta sala que insistiam em chamar biblioteca, ficava sempre aberto e marcado por uma fita de cetim vermelho. Aquele castiçal trouxe por muito tempo uma vela permanentemente acesa, agora algumas gotas de cera eram o que restava.
Uma enxurrada de lembranças atropelou-me neste momento, levantei os olhos e a casa estava reluzente, as janelas abertas deixavam entrar a luz do sol e o perfume das flores que cresciam no jardim, o som de uma voz muito afinada acompanhado de um suave violão vinha da sala principal. Voltei pelo corredor, e, descendo as escadas pude abraçar vovó Inácia, Quanta saudade eu tinha dela, dos doces que me oferecia escondido de mamãe quase na hora do almoço; tia Clarita, a irmã mais velha de papai, eu sempre ia à casa dela chupar jabuticabas e mangas, uma pessoa muito alegre e brincalhona, bem diferente de papai sempre tão sério; e vovô Geraldo, seus cabelos brancos, parecia o mesmo desde a última vez que o vi. Todos pareciam esperar minha chegada, meu primo Alfredo, que tocava o violão, encostou no sofá seu instrumento, me deu um forte abraço e disse com uma voz suave:
_ Que bom que você chegou! Agora estamos prontos.
Lembrei-me então do tempo em que eu, garoto, ficava horas observando-o dedilhar com maestria o violão e imaginando o dia que faria igual a ele. Que fins levaram esses sonhos de infância eu não sei, o sonho permaneceu, mas a frustração de nunca ter aprendido música voltou a mim naquele instante e nem mesmo me atentei às palavras de Alfredo.
Todos se encaminhavam para a mesa e foram, um a um tomando os mesmos assentos que sempre ocupavam nessa ocasião, encontrei em minhas memórias fragmentos da última vez que participei deste banquete. Na verdade nós crianças éramos servidas antes e em separado, éramos tantos e fazíamos tanto barulho que, creio, atrapalhávamos o tom de cerimônia.
Hoje, porém foi diferente, vovô Geraldo me apontando a cadeira que sempre fora a dele pediu que eu ocupasse o lugar de honra, pois era o convidado principal. Um pouco constrangido tomei o lugar ofertado e começamos as orações, agradecemos a Deus pelo alimento ali servido e vovó Inácia fez seu agradecimento especial pela minha presença e pediu consolo para os ausentes.
Todos comemos. O cardápio era o mesmo de tantos anos atrás, mas o sabor, realçado pela emoção de estar depois de tanto tempo sentado à mesa com pessoas tão queridas, era algo divino. Saboreei cada grão, cada fatia daquele prato.
Senhor Romualdo, vizinho e amigo da família por várias gerações, como sempre, fez questão de servir o licor e tia Clarita se apressava a buscar a bandeja do cafezinho que já espalhava seu perfume pelo ar. Após o café, todos permaneceram na sala, Alfredo voltara para o violão e continuava nos premiando com suas sonatas perfeitas, os demais permaneciam calados, seus olhares se cruzavam e sempre dirigidos a mim, seus rostos emolduravam ternos sorrisos silenciosos.
Depois de horas sem uma palavra, vovô se aproximou de mim e segurando minha mão começou a me falar:
_ Filho, sei que hoje você entrou pela primeira vez na biblioteca, com certeza não encontrou lá nenhum dos tesouros que fantasiava em sua infância e, como viu a porta hoje estava aberta para você.
Quis perguntar por que chamavam de biblioteca, por que era proibida para mim, por que, por que...
Não houve tempo para pronúncias, vovô como quem adivinhasse meus pensamentos foi dando as respostas.
_ Aquele lugar um dia foi uma biblioteca, ali existiam três estantes com livros, enciclopédias completas e uma linda coleção de literatura clássica. Seu pai era criança nesse tempo, ele adorava o lugar, logo que aprendeu a ler iniciou sua saga de leitura, iniciou por Júlio Verne pela curiosidade científica que lhe era natural, mas sempre dizia que Machado de Assis era seu autor preferido. Muitas vezes, tarde da noite, vinha ele procurar velas para continuar a ler. Não tínhamos eletricidade na casa àquela época.
_ Os livros, que fim tiveram? Numa noite, antevéspera do natal, ele estava lá com seu castiçal debruçado sobre um volume de contos de natal, queria escolher um para contar na noite seguinte. Todos na casa já dormiam quando de súbito despertei e corri para a biblioteca que encontrei envolta em fumaça, abri a porta e seu pai estava caído abraçado a alguns livros e cercado pelas chamas que já dominavam as estantes e se espalhavam pelo assoalho de madeira. Corri e arrastei-o para fora, já com as roupas queimando, ao passar pela porta fui atingido no olho por um pedaço de madeira incandescente. Essa é então a origem das marcas de queimaduras que seu pai para sempre carrega nas costas e de minha deformação do rosto e cegueira do olho esquerdo.
_ A casa estava cheia naquele dia e enquanto Clarita socorria as crianças, os adultos se apressavam em trazer água e abafadores para conter o fogo. Aquele lado da casa ficou arruinado e nosso natal também. Vários vizinhos vieram ajudar e um deles acabou morrendo, sufocado pela fumaça quando tentava salvar os livros preferidos de seu pai.
_ No ano seguinte fizemos a reforma da casa, decidimos então construir uma capela naquele lugar em homenagem ao nosso vizinho falecido. Seu pai, traumatizado, abandonou os estudos e nunca mais abriu um livro.
_ A capela ficou linda, a madeira do forro, os vitrais da janela e o altar entalhado eram perfeitos para minha prejudicada visão. Ao longo dos anos ela ficou fechada, ninguém gostava de entrar lá pelas lembranças que o lugar encerrava. Até o dia que Alfredo descobriu ali o lugar ideal para seus estudos de música, era um lugar tranqüilo e tinha acústica perfeita.
Alfredo então se aproximou de mim e passou a ajudar vovô no relato:
_ Eu era criança quando ganhei meu primeiro violão de presente de aniversário e logo percebi que tinha jeito pra música, estudei muito até a adolescência e em seguida entrei na faculdade de música no mesmo ano que você nasceu. Quando você era um bebê eu tocava suaves melodias que embalavam seu sono. À medida que foi crescendo, sempre que nos encontrávamos você parava e observava admirado por horas enquanto eu tocava, todos diziam que seria meu seguidor na música e então comecei a lhe ensinar os primeiros acordes que você repetia com dificuldade tentando esticar seus pequenos dedinhos sobre o braço do violão.
_ Creio que deve estar imaginando por que não continuou estudando violão depois disso. Seus pais resolveram se mudar para longe daqui e...
Neste instante tia Clarita entrou na sala interrompendo a narrativa de Alfredo e anunciando que chegaram os homens da construtora. Por alguns instantes fiquei paralisado pelo silêncio sepulcral que esta notícia causara, ninguém saiu do lugar onde estava enquanto o barulho de muitas botas invadiu a casa.
Os homens entraram e começaram a carregar os móveis para o lado de fora onde os esperava um caminhão sem se importar com nossa presença, na verdade pareciam nem nota-la. Eu quis correr para fora e impedi-los, mas fui contido por Alfredo que me disse que deveríamos permanecer dentro da casa.
Sem qualquer outra explicação, vovô Geraldo chamou todos e disse que devíamos subir para a biblioteca para que não interferíssemos no trabalho. Em fila subimos as escadas e nos encaminhamos para aquela sala que estranhamente não parecia a mesma de momentos atrás. O baú não estava mais lá, muitas velas acesas clareavam todo o ambiente e exalavam um suave perfume de sândalo, cortinas brancas muito leves cobriam todas as paredes, balançando a uma suave brisa fresca. Nesse momento me dei conta que há algumas horas havia desaparecido o frio que tanto me incomodava quando cheguei à casa. Confortado pela presença de tantas pessoas queridas fiquei ali por alguns minutos ouvindo o som dos últimos passos de pessoas sobre aqueles assoalhos que faziam fundo para o fim da história daquele sobrado.
Estamos todos juntos. Estamos prontos agora.


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