terça-feira, 3 de dezembro de 2013

O tesão de cozinhar com afeto - parte 2

Era para não ter sido um sábado qualquer...
E não foi mesmo...
E nenhum sábado jamais foi o mesmo sábado qualquer...

Ele acordou de manhã. Bem cedo. Acordar aqui é força de expressão, é modo de dizer, pois nem tinha dormido direito, pôs-se de pé às 7 da manhã. já começou trocando o lençol da cama que precisava estar preparada. Nada poderia faltar ou dar errado naquele dia. Foi necessário dar uma vassourada na casa, um paninho aqui, limpa bem a cozinha, ou melhor, o palco para este dia. A escolha do cardápio foi cuidadosa, não haveria um prato requintado nem a companhia de um bom vinho, aqueles tempos eram de escassez naquela casa. Haveria sim a simplicidade requintada de um almoço barato nutritivo e principalmente, preparado com afeto.
(Latim affectus particípio passado do verbo afficere. Tocar, comover o espírito e, por extensão, unir, fixar (it. attaccare))
Toalhas limpas no banheiro quase limpo. não deu tempo de limpar tudo.
Na noite anterior tinha ficado até madrugada conversando via messenger com a convidada do almoço de hoje, combinando detalhes, trocando gentilezas e flertes à distância, esse vinha sendo o único meio pelo qual tinham se permitido paquerar até então. a conversa tinha girado por vários caminhos como imaginar o sabor do beijo e outros relacionamentos. Ansioso ele foi pra cama e não conseguia dormir, voltou pro computador tentou escrever poesia, voltou pra cama e ao computador ainda outras vezes entre  4 e 5 da manhã. A única frase na tela do editor de texto dizia "meu coração bate diferente quando estou perto de você".
Estava enfim tudo pronto, a casa pronta, músicas pra tocar, e o mais importante: os ingredientes do almoço devidamente preparados e a postos.
O plano previa começar o preparo da comida um pouquinho antes dela chegar, mas como saber a hora? ansiedade nível 8.
Cozinhar com afeto vai tocar e comover as pessoas que se fartarão daquele alimento preparado, é um ritual onde cada gesto, da manipulação dos ingredientes ao serviço final e o prato na mesa, é executado com o foco nelas, a mente do cozinheiro estará focada nos melhores sentimentos e emoções que o une a elas.
Todos os seres tem seus rituais de acasalamento e as ferramentas de sedução sempre passam por demonstrar dotes e habilidades. Por isso a cozinha aqui é o palco, claro que não teria o mesmo significado se ela chegasse e o almoço estivesse pronto, seria preciso fazer pra ela a sua dança de acasalamento, pilotar com desenvoltura e elegância, quiça alguma beleza, o fogão e a pia.
Lá estavam eles na pequena cozinha verde, ele caminhava do fogão pra pia mexia uma panela, testava os temperos... o cheiro da comida já tomava conta do ambiente animando a conversa ainda desajeitada, aos poucos começavam a sintonizar o objetivo principal daquele ritual todo, imediato: "descobrir qual é o sabor do seu beijo" diria ele mais tarde.
Não era a primeira vez que fazia aquilo, a estratégia de um almoço ou jantar a dois há tempos já se tornara o seu ritual preferido, o mais promissor e mais eficiente de todas as táticas da sua guerrilha erótica. Mas aquela parecia diferente e mais desejada que todas as outras vezes, ela estava ali toda linda na casa dele, cozinha dele, assistindo sua performance gastronômica com carinha de admiração e desejo crescente, pouco a pouco ele estava vendo as barreiras imaginárias de diferenças que existiam entre eles se abrirem para interesses comuns, vontades iguais de desfrutar dos prazeres que a vida tivesse pra lhes oferecer.
Naquela dia que foi tarde acabou em noite se estendeu pela madrugada e continuou na mesa do café, foram amassados os lençóis, as toalhas jogadas na cama e ainda meio desajeitados procurando as peças de roupa jogadas pelo quarto. De manhã antes do beijo de até breve no ponto de ônibus, eles mentalmente teriam combinado que gozariam juntos muitas vezes dos prazeres ali experimentados.
Ouço ventos que me dizem que eles estão lá até hoje gozando infinitamente em rituais pecaminosos de gula,  luxuria e preguiça.

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